ARTIGO DO DESEMBARGADOR LÁZARO GUIMARÃES CRITICA O ANTEPROJETO DO CPC.

INCIDENTE DE USURPAÇÃO DO PODER


O Senado abriga proposta que tende a reduzir a autoridade e a efetividade do Legislativo e comprometer a independência dos juízes de primeiro e segundo graus. Trata-se da providência prevista no artigo 900 do anteprojeto de Código de Processo Civil, que atribui ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça o poder de suspender todos os processos em curso nas instâncias ordinárias, em todo o território nacional, e de determinar a solução de questão jurídica antes do seu exame pelos órgãos competentes. O artigo tem a seguinte redação: "As partes, os interessados, o Ministério Público e a Defensoria Pública, visando à garantia da segurança jurídica, poderão requerer ao tribunal competente para conhecer de eventual recurso extraordinário ou especial a suspensão de todos os processos em curso no território nacional que versem sobre a questão objeto do incidente". Esse dispositivo se inclui no capítulo que trata do incidentede resolução de demandas repetitivas e, como se vê, autoriza o tribunal superior, antes da deliberação do Tribunal de Justiça ou do Tribunal Regional Federal, a avocar o processo e decidir de modo vinculante, conforme disposto no art. 903: "Julgado o incidente, a tese jurídica será aplicada a todos os processos que versem idêntica questão de direito". Mais ainda: qualquer decisão das instâncias inferiores que vier a contrariar a tese adotada pelo tribunal superior será passível de cassação imediata por meio de reclamação, também antes da apreciação de recurso especial ou extraordinário que venha a ser interposto.





O tribunal superior poderá, assim, editar norma geral e abstrata com eficácia ainda mais forte que a lei. O ordenamento jurídico brasileiro sempre acolheu os princípios da independência judicial, do juiz natural e da independência e harmonia entre os Poderes da República, que seriam fortemente abalados caso aprovada essa usurpação de poder decorrente da avocação pelo tribunal superior de processos em curso nas instâncias inferiores, antes que as teses discutidas sejam devidamente amadurecidas e decididas. Note-se que a Constituição somente atribui competência recursal excepcional ao STF e ao STJ nas hipóteses dos artigos 102, III, e 105, III, após a decisão da causa, em única ou última instância. Falar de um eventual recurso para fixar competência excepcional significa utilizar de elemento hipotético, para forçar uma uniformização apressada, indevida, que em nada contribuirá para o aperfeiçoamento do sistema processual, muito pelo contrário. A Inglaterra mantém desde o século 16 uma ordem constitucional que assegura a soberania do Parlamento, órgão de representação da vontade popular. Ali, nenhum juiz está autorizado a decidir contra ou à margem da regra editada pela Câmara dos Comuns e revista pela Câmara dos Lordes. Os Estados Unidos da América vieram abrandar essa rigidez para adotar a revisão judicial e a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de lei, sistema também adotado no Brasildesde a primeira Constituição republicana. Esse controle não se faz de modo ilimitado, expansivo, e, sim, pela forma concentrada, de competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal, ou pela incidental, esta última em escalas, começando pelo juiz singular, passando aos tribunais ordinários, todos jungidos à reserva de plenário e ao quorum da maioria absoluta dos seus membros.







Inexiste no mundo civilizado hipótese em que a uma corte de cassação se atribua poder de julgar controvérsia fixada num processo antes do pronunciamento das cortes originárias, ressalvado o incidente de inconstitucionalidade previsto em algumas constituições europeias, mas sem a extensão proposta ao Senado pela comissão de juristas que elaborou o anteprojeto de Código de Processo Civil. A finalidade de uniformizar e estabilizar a aplicação do direito poderia muito bem ser alcançada se o incidente de resolução de causas repetitivas adotasse as regras de modificação de competência e reunião de ações pela conexão, desde que caracterizadaesta pela identidade de questão jurídica e verificada instância por instância, sem atropelamentos.


Texto do Desembargador do TRF5a Região Lázaro Guimarães publicado no Diário de Pernambuco, em 1.8.2010, na Coluna OPINIÃO
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