Proprietário registrado no DETRAN não responde pelo IPVA se provar venda anterior do veículo


Muitos advogados têm me perguntado se o novo sistema de precedentes judiciais obrigatórios introduzidos pelo CPC/2015 não irá engessar o trabalho do Poder Judiciário, o qual - em matérias já pacificadas nas cortes superiores - terá que observar e aplicar aos casos concretos as teses firmadas pelos Tribunais em todas as hipóteses previstas no artigo 927, da Lei 13.105/2015.

Tal dúvida é bastante natural, provindo de uma geração que estudou como principais fontes do direito: a Lei e a Jurisprudência, e que também se acostumou, na prática forense, que o princípio do Livre Convencimento do Juízo sempre concedia alto grau de liberdade ao magistrado na interpretação e aplicação da norma ao caso sub judice.

No novo Código de Processo Civil, entretanto, o princípio da Segurança Jurídica ganhou maior destaque, no sentido de que o cidadão possa usufruir do benefício de saber com antecipação qual será a resposta do Judiciário para solução dos seus conflitos, admitindo-se, de uma vez por todas, que o Judiciário é um Poder uno, ainda que composto por diversos integrantes, a sua resposta para uma mesma situação jurídica será idêntica em qualquer que seja o estado da federação.

O novel sistema processual prevê como alternativas de interpretação e aplicação da norma, soluções já consagradas no sistema da “common law”, quais sejam: a) o “distiguinshing” (Teoria das Distinções) e b) o “overruling” (Teoria da Superação de Precedentes).

Para que melhor possamos entender o funcionamento dos Precedentes Judiciais Obrigatórios, tomemos como exemplo a recente editada Súmula 585 do Superior Tribunal de Justiça, que trata da responsabilidade do alienante pelo pagamento de IPVA, a saber:

Súmula 585 - “A responsabilidade solidária do ex-proprietário, prevista no artigo 134 do Código de Trânsito Brasileiro – CTB, não abrange o IPVA incidente sobre o veículo automotor, no que se refere ao período posterior à sua alienação”.


De acordo com as palavras do professor Silvano José Gomes Flumignan em artigo do CONJUR de 07/02/17[1]: “Uma leitura apressada da súmula poderia levar à falsa conclusão de que o alienante não poderia ser responsabilizado, do ponto de vista tributário, pela não comunicação de venda aos órgãos de trânsito em nenhuma hipótese.”
Nesse sentido, vejamos o que dispõe o artigo 134 do Código Nacional de Trânsito:
Art. 134. No caso de transferência de propriedade, o proprietário antigo deverá encaminhar ao órgão executivo de trânsito do Estado dentro de um prazo de trinta dias, cópia autenticada do comprovante de transferência de propriedade, devidamente assinado e datado, sob pena de ter que se responsabilizar solidariamente pelas penalidades impostas e suas reincidências até a data da comunicação."
De acordo com o professor Silvano, diversas Fazendas Públicas tentaram ampliar a aplicação do dispositivo para responsabilizar o antigo proprietário por débitos tributários enquanto o alienante estivesse em mora com o dever legal de comunicar a venda.
Os contribuintes sustentavam que a transferência de propriedade de bem móvel ocorreria com a tradição, de acordo com o Código Civil e que o IPVA seria um tributo de natureza real. As Fazendas Públicas, com a defesa de que a responsabilidade seria solidária, como decorrência do artigo 134 do CTB.
O STJ, todavia, em 02 de fevereiro de 2017, pacificou o entendimento a ser utilizado em todo o Poder Judiciário brasileiro, de que havendo comprovação de alienação, é exclusivamente do adquirente a responsabilidade de arcar com todos os débitos de IPVA gerados posteriormente à venda.
Diante de um precedente judicial obrigatório como o acima descrito, poderia o magistrado desrespeitar uma súmula do STJ e ainda assim atribuir ao vendedor do veículo responsabilidade pelo pagamento do IPVA?
Não de acordo com o artigo 988, do CPC/15, que permite, inclusive, a interposição de uma Reclamação dirigida diretamente ao presidente do STJ, a fim de que ele casse qualquer decisão de magistrado que contrarie a autoridade das decisões do referido Tribunal.
Todavia, a aplicação de um precedente pressupõe que o magistrado analise as razões que levaram o STJ a tomar tal decisão, o que no sistema da “common law” é chamado de “ratio decidendi”. No caso, a Súmula 585 foi bastante específica e abordou somente a hipótese de não incidência do Código de Trânsito Brasileiro. Os acórdãos que antecederam e subsidiaram o enunciado não se reportaram à circunstância da legislação estadual tratar de maneira específica sobre o tema, como muito bem destacou o professor Silvano Flumignan em seu artigo.
Veja-se que existem diversas legislações estaduais que regulamentam especificamente a matéria, como por exemplo, o artigo 10, inciso V, da Lei 10.849/1992 de Pernambuco e o artigo 6o, inciso II, da Lei 13.296/2008 de São Paulo:
Art. 10 da Lei 10.849/92. “São responsáveis, solidariamente, pelo pagamento do IPVA e acréscimos devidos: (...)V - o proprietário do veículo que o alienar ou o transferir, a qualquer título, até o momento da respectiva comunicação ao órgão público encarregado do registro e licenciamento, inscrição ou matrícula.” 

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Artigo 6º da Lei 13.296/08. “São responsáveis pelo pagamento do imposto e acréscimos legais: (...)II - o proprietário de veículo automotor que o alienar e não fornecer os dados necessários à alteração no Cadastro de Contribuintes do IPVA no prazo de 30 (trinta) dias, em relação aos fatos geradores ocorridos entre o momento da alienação e o do conhecimento desta pela autoridade responsável;”    
Nesses casos, o magistrado pode, portanto, utilizar-se da Teoria das Distinções prevista no artigo 489, §1º, inciso VI, do CPC/15, e atribuir a responsabilidade tributária ao alienante pernambucano ou paulistano que não comunicar ao órgão de trânsito sobre a venda do seu veículo, tudo em razão da legislação estadual e não em razão do artigo 134 do CTB, que foi utilizado como "ratio decidendi" da referida súmula.




[1] Nova súmula do STJ sobre IPVA não se aplica a todos os casos, CONJUR, disponível em: http://www.conjur.com.br/2017-fev-07/silvano-flumignan-sumula-stj-ipva-nao-aplica-todos-casos#top

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